Cronologia- 20 de Maio de 75







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00.00 - num dos gabinetes, Álvaro Guerra confidencia-me: "Hoje, muitos de nós estamos aqui a ser acusados de coisas feias. Como sabes, como todos sabem, fomos sempre lutadores anti-antigo regime. Só por termos, alguns de nós, uma opção partidária, que nada tem a ver com a de um outro partido minoritário na cena portuguesa, é que estamos a ser objecto desta escalada dirigida introversamente no intuito de colocar mais um jornal ao serviço do dito partido. Não aceitaremos a política do "facto consumado" em que nos quizeram colocar"

00.15 - informam-me que Mário Soares voltara à porta das oficinas preocupado com a situação dos redactores que estavam sem comer desde o meio-dia.

00.45 - mais um telegrama é lido na rua a apoiar Raúl Rego e a redacção da "República".

00.50 - o secretário-geral do PS faz nova tentativa para entrar na "República". Novamente também os elementos da CCT, coadjuvados por outros trabalhadores se mostram intransigentes: Mário Soares não entra.

01.00 - na sala de visitas esboça-se uma tentativa de conversações entre elementos da CCT (Joaquim Dias, Júlio Moreira, Delmar, Serrano, Vladimiro, etc.) e da Administração (representada por Gustavo Soromenho). Está presente o chefe da redacção João Gomes, outros trabalhadores e o repórter do EXPRESSO. Serve de medianeiro o Major Lobato Faria. Aflora-se a hipótese de se solver o diferendo. A CCT parece ir conquistar terreno. É quando João Gomes intervém acaloradamente e acusa: "Está-se a tentar influenciar uma decisão sem a presença do director-adjunto do jornal. Não o permito". Saiu e apareceu de seguida com Vítor Direito e Álvaro Guerra. Já o ambiente degenarara, porém em controvérsia e esfumara-se a possibilidade de entendimento. Vítor Direito nem chega a entrar. Volta costas com um gesto de evidente contrariedade.

01.15 - Há nova tentativa de reunião com as mesmas personalidades, acrescidas da presença de Raúl Rego. Não consigo entrar. Fico à vidraça e só vejo gestos. A discussão não conduz a nada. E Vítor Direito é o primeiro a retirar-se.

01.25 - na rua ecoam mais palavras de ordem. Em frente do edifício da Editorial República, situam-se uma delegação do PS, outra do FSP e outra ainda do MJT. Em todas as janelas se vê muita gente.

01.30 - Vítor Direito dirige-se à janela e anuncia aos manifestantes que o ministro da Comunicação Social, Comandante Correia Jesuíno, acompanhado de director-geral da Informação, Comandante Rui Montez, se aprestavam a deixar a Assembleia do MFA, que decorria no Alfeite, para se deslocarem às instalações da "República" com intenção de resolver o diferendo. (Ruidosa assobiadela acolhe a "novidade")

01.40 - Retornam as palavras de ordem com novo fôlego. Aí vão:"Que ninguém arrede pé", "A "República" é do povo, não é de Moscovo", "De que lado está o MFA?", "Fechar o jornal é traição a Portugal", "Rego, amigo o povo está contigo".

01.50 - Anuncia-se que em homenagem ao povo ali presente iria sair de madrugada uma "República" policopiada e escrita pelos seus redactores.

02.00 - Lá fora: "O povo quer saber o que está a acontecer".

02.50 - Mário Soares, Manuel Alegre e outras figuras gradas do PS, dirigem-se à cervejaria da Rua Nova da Trindade e comem uma "bucha".

02.10 - Burburinho geral e expectativa. Chegam Correia Jesuíno e Rui Montez. É mandada evacuar a sala da redacção.

02.15 - corro para a redacção. Um oficial à paisana da PM não me deixa entrar. Vejo a equipa da TV lá dentro. Protesto. Entro quase à força e afirmo peremptório: "Só saio daqui se sair a televisão". O ministro é informado. E vem a autorização: "A TV e o EXPRESSO podem entrar". Agradeço.

02.20 - Correia Jesuíno: "Antes de mais desejo tornar bem claro que a Editorial República é uma empresa privada que publica um jornal que respeito muito. A minha comparência aqui, com o com. Montez, é no sentido de resolvermos da melhor maneira este grave problema. No entanto esclareço desde já que o conflito entre trabalhadores e Administração foge ao âmbito do meu Ministério. Ao Governo Provisório não compete, em casos destes, tomar quaisquer medidas administrativas. Nem quer. Isso era no tempo da "outra senhora". Por outro lado, porém, existe uma Lei de Imprensa que deve ser aplicada. E ela dá razão completa à administração desta empresa. Que tem todo o direito a meu ver de fazer o jornal como entender".

02.30 - João Gomes toma a palavra e relata os acontecimentos, até essa hora, por ordem cronológica.

02.40 - Júlio Moreira, da CCT, segue-se a João Gomes e começa por fazer uma correcção às palavras deste quando afirmara que (...) "os gráficos" (...). Esclarece Júlio Moreira "que não eram os gráficos mas sim todos os trabalhadores do jornal que haviam tomado parte no processo. A nossa posição deriva da circunstância deste jornal tomar posições nitidamente partidárias que ludribia os leitores que o adquirem". (Correia Jesuíno interrompe: "Os leitores têm o direito de a comprar e ler o jornal que quizerem"). Prossegue Júlio Moreira: "Nos últimos meses tiveram de abandonar o jornal 14 redactores, não afectos ao PS. E, há dias, Álvaro Belo Marques, o director comercial que foi principal obreiro do levantamento económico da "República", viu-se igualmente coagido a apresentar a sua demissão dadas as dificuldades que lhe levantavam. Foi a partir daqui que a luta se agudizou. Através da recolha de assinaturas exigimos a permanência de Belo Marques. E, pouco depois, apresentámos a proposta de afastamento da direcção e chefia do jornal. Assim chegámos a este impasse".

02.50 - Correia Jesuíno: "A República" é propriedade dos seus accionistas. Estes são representados pela Administração. É esta quem detêm o suporte legal da empresa. Repito que o jornal tem o direito de fazer a informação que quizer e entender. E nem me parece que o jornal seja assim tão partidário como os senhores afirmam. (Referia-se aos trabalhadores). Logo, quem não estiver de acordo, que mude de casa!"

03.00 - Júlio Moreira: " Os trabalhos pensaram, talvez um pouco ingenuamente, que a sua vontade de fazerem um jornal apartidário, poderia prevalecer sobre a questão. Não pediram mais dinheiro. Só um jornal para o povo!"

03.05 - Rui Montez intervém pela primeira vez: "Se aos trabalhadores deste jornal repugna defender certa ideologia, mesmo estando razoavelmente pagos, parece-me que, neste momento e face à Lei da Imprensa, devem fazer outra opção".

03.10 - Delmar responde : "mas há promessas escritas feitas aos trabalhadores de que o jornal seria independente e apartidário. E isto não foi cumprido".

03.15 - Gustavo Soromenho: "Eu sempre vos disse que gostaria de ver uma "República" pluralista um tanto inclinada para o socialismo".

03.20 - Raúl Rego: "Eu até pedia licença ao Sr. Ministro para ler o nosso estatuto político, que já teria sido publicado não fora estes acontecimentos que, de tão lamentáveis, derivaram quase para a coacção física. (Nesta altura João Gomes interveio e mostrou-se contrário à leitura do documento). Todavia, após troca de palavras entre as duas facções litigiosas. Raúl Rego acabou por o ler, embora prevenido que o texto talvez ainda não fosse o definitivo.

03.25 - Rui Montez, na sequência de palavras de membros da CCT, a denunciar as diversas tentativas feitas por Mário Soares para entrar nas instalações do jornal e após alguém haver esclarecido que o secretário-geral do PS era um dos accionistas da empresa, respondeu: "Pois se é accionistaque vá ás reuniões do Conselho de Administração, aqui não creio que tenha algo a fazer"...

03.30 - Jaime Gama resolve-se a entrar directamente no "affair". Vinca: "O que aqui se passa não é, como pretende a CCT, um mero problema de ordem laboral. Por detrás de tudo isto encontra-se um evidente problema político. E sob o risco de não compreendemos que o regime se pretende implantar neste país, de desvirtuamos todos o espírito do "25 de Abril", de vermos Portugal alvo das mais dispares interpretações a nível nacional e internacional, de, enfim, caminharmos apressadamente para o abismo, vocês, senhor ministro e senhor director-geral da Informação devem fazer cumprir o que estipula a Lei da Imprensa. Este jornal - prosseguiu - é alvo de uma tentativa de manipulação que visará servir determinado partido. (Lembram-se dos casos de "O Século", do "Diário de Notícias", do "Diário de Lisboa", entre outros). Terminou assim Jaime Gama : "Se admitirmos a política de facto consumado e não respeitarmos a Lei da Imprensa, então não sei para onde irá este país!".

03.35 - Com. Rui Montez, um pouco agastado: "Não estou de acordo com o Sr. Jaime Gama quando dizia que nós temos obrigação de resolver o diferendo. O ministro da Comunicação Social não é policia. Nem juiz. Os tribunais, sim, é que detêm poderes para aplicar a lei. Doutro modo, e seguindo o raciocínio do senhor Jaime Gama, teríamos também de exigir ao ministro da Justiça que fosse prender criminosos"... (Alusão, por certo, ao facto do apontado ministro - Salgado Zenha - ser do PS). "Além do mais - continua o director-geral da informação - não deve ser usual a qualquer ministro e em qualquer parte do mundo, sentar-se à mesa das conversações para tentar, com o melhor da sua boa vontade, resolver questões deste melindre, debaixo dos meios de pressão desta multidão relutante que escutamos lá fora". (Na sala reinou súbito silêncio)...

03.40 - ... que o com. Correia Jesuíno quebrou ao interrogar; "Como vamos sair disto?"

03.45 - o administrador Gustavo Soromenho volta ao uso da palvra: "Estou receptivo a possiveis acordos que desejo, sinceramente, apareçam. A minha disposição é a de que todos nós possamos voltar a fazer amanhã o nosso jornal."

03.50 - Correia Jesuíno: "A proposta parece-me bastante cordata".

03.55 - Um elemento da CCT (Joaquim Dias, linotipista) faz a mais arrebatada exposição dos acontecimentos. Frisa, a dado momento: "Como operário não devo nem quero ignorar as divergências que marcam a luta da classe operária contra a classe exploradora. Já se disse que jornalistas não afectos ao PS mudaram para outras publicações pressionados pelo mau ambiente de trabalho que aqui disfrutavam. Mas todos sabem que os trabalhadores da produção deste jornal não colaboraram nessa luta que se travou entre PS e PC. Efectivamente isso não era connosco. Connosco é esta luta que tem por objectivo transformar este jornal naquilo que entendemos ele nunca deveria ter deixado de ser: apartidário, objectivo, independente de partidos. E a nossa óptica é a de que quem deve sair são os elementos que desejam continuar a ter na "República" o orgão de um partido e não os trabalhadores que o querem apartidário e ao serviço de todo o povo português antifascista e patriota, pois foi ele quem comprou, há mais de uma dezena de anos, a rotativa onde se imprime o jornal e custou três mil contos. Não foi o PS".
Joaquim Dias terminaria a sua intervenção marcada de uma garra surpreendente: "Os trabalhadores da produção conseguiram à custa de muito esforço eliminar as suas divergências, que as tinham, indiscutivelmente, e não desejam ser obrigados a vender a sua força de trabalho a um só partido a um só partido, seja ele qual for. Teremos, por uma coisa que me parece tão simples, ser obrigados a mudar de emprego?"...

04.00 - Correia Jesuíno: "Gostei imenso da intervenção deste operário. Foi sincera. Foi vibrante. Foi sentida. E que lhe posso eu dizer? Que é possivel a Lei da Imprensa que mal entrou em vigor já estar ultrapssada? Sei lá!..."
Mais adiante, o ministro da Comunicação Social remataria: "São as críticas construtivas que fazem avançar o processo revolucionário. E nós, nos MFA, desejamos que nos critiquem para sabermos corrigir os nossos desvios quando os houver".

04.05 - Rui Montez: "Vocês, operários, devem saber o meu Ministério é acusado de tudo o que de mau acontece nos órgãos de comunicação. E eu próprio não escapo a esses ataques. Acusam-me uns de ser comunista, outros de entrar em jogos e maningâncias. São calúnias que lamento, porquanto só desejo ser objectivo e imparcial no desempenho do meu cargo, desde que essa imparcialidade não brigue com o processo revolucionário em curso".
Acentuaria de seguida o ministro: "Ainda bem que existe a "República", economicamente independente e a permitir uma informação pluralista. Óptimo que tenhamos o EXPRESSO. E só lamento que não haja mais "Repúblicas" e mais EXPRESSOS. Seria um alívia para o meu Ministério, para o Conselho da Revolução, para o Governo Provisório, para o MFA, pois, como é do vosso conhecimento, a nacionalização da banca atirou-nos para cima com os gravíssimos problemas económicos que atingem a Imprensa indirectamente abarcada por essa medida. Uma imprensa que urge reconverter rapidamente. Ora, a economia do país encontra-se numa situação gravíssima e a problemática da Imprensa deficitária só contribui para a agravar. É isto que os trabalhadores não devem ignorar!"

04.15 - o com. Rui Montez, face ao recrudescer das palavras de ordem na via pública, tem este comentário: "Há faz-me lembrar os dos campos da bola. É realmente muito grande o fervor revolucionário daqueles trabalhadores que atacam outros trabalhadores que aqui estão..."

04.20 - João Gomes responde a Rui Montez: "Olhe que se não fossem eles não sei o que nos teria já sucedido..."

04.25 - O director-geral da Informação: "Parece-me que é altura dos trabalhadores se pronunciarem sobre se aceitam continuar o seu trabalho como até aqui, dado que a Administração a tal é concordante. Caso contrário o COPCON terá de selar as portas do edifício pois não pode permanecer aqui eternamente. Nem o brigadeiro Otelo o consentiria. E então os tribunais que decidam, pois já não se soltam cães policias aos tipógrafos para os obrigar a trabalhar no que não querem!..."
Por fim: "Claro que sem nos esquecermos que temos a Lei de Imprensa mais democrática do mundo, que tanto trabalho deu, e não a vamos já deitar para o lixo sem sequer a termos experimentado, medido os seus buracos, observando os seus defeitos e as suas virtudes. E sem nos esquecermos igualmente que não parece sensato nem crucial que apareçam nos jornais as mais diversificadas Comissões de Trabalhadores a exigirem um jornal à sua maneira..."

04.30 - a pedido da CCT, forças militares vão à dependencia da "República", no Largo da Misericórdia, para "protegerem Belo Marques" que viria conferenciar com a CCT a fim de ajudar à resposta definitiva sobre a questão.

04.35 - Correia Jesuíno acabara de lançar mais um apelo ao entendimento mútuo das partes litigiantes e Jaime Gama diria que nunca foi ideia sua nem dos seus camaradas transformar a "República" num orgão sectário. "Com cunho socialista, sim; mas objectivo e sem enfeudamentos ao PS, que - sublinhou - desejamos ter liberdade para criticar sempre que se entender necessária a crítica".

04.40 - Regressam os elementos principais da CCT. Pedem desculpa pela demora. Os rostos vêm tensos. E o cansaço é visível e evidente em todos nós. (Lembro que havia quem já não soubesse o que era dormir numa cama há três dias e outras tantas noites...). Delmar é o porta-voz da CCT. Em síntese afirma: "O que se encontra na origem deste problema é a independência do jornal. Por isso os trabalhadores decidiram não ceder nem um palmo nas suas posições". Estava definitivamente afastada qualquer hipótese de solução do conflito de maneira amigável.

04.50 - Gustavo Soromenho afirma que a Administração do jornal; enquanto o conflito não se resolver, está economicamente impossibilitada de pagar os salários, na medida em que a empresa carece de possibilidades para suportar despesas elevadíssimas com o jornal paralisado.

04.55 - Delmar solicita ao major Lobato Faria que as tropas do COPCON permaneçam ali até à abertura do Ministério do Trabalho, a fim de se pedir a comparência de um representante deste organismo para tomar conta do problema que dizia respeito ao sector. Logo a seguir tornou-se evidente que isso nada adiantaria e começaram os preparativos para a evacuação do edifício.

05.00 - Tanto o ministro da CS como o director-geral da Informação me dizem, com ar pesaroso, lamentarem profundamente que a sua missão medianeira houvesse falhado.

05.05 - João Gomes informa os manifestantes, que permaneçiam no exterior indiferentes à chuva, dos últimos acontecimentos. O encerramento da "República" é recebido com estrondosa assobiadela enquanto a multidão grita: "Fechar o jornal é fazer o jogo do Cunhal".

05.10 - A resistência física e anímica de todos quantos se encontram dentro das instalações da "República" começam a estoirar. É o desalento. O quebrar das barreiras. Momentaneamente há quem dê largas ao tique nervoso que se acumulara em horas que, mesmo para mim, constituiram das mais penosas, das mais dificeis como profissional de uma Informação que não se sabe para onde vai. Vejo Raúl Rego com as mãos na cabeça. António de Sousa chora silenciosamente. Joaquim Dias é a imagem cansada e olheirenta de um trabalhador que deu tudo o que pôde por uma causa que achou justa.

05.30 - As "Berlliets" haviam dado início ao transporte dos ocupantes da "República" que os deixasse a coberto de quaisquer danos físicos provocados pelos manifestantes. Sou dos últimos a sair. Recuso a entrada em viaturas militares. Saio a pé, passo o cordão das forças do COPCON e ninguém me molesta ou dirige frases ofensivas. Vejo que Gustavo Soromenho também abandonava o edifício a pé. Continuo a tomar apontamentos.

06.00 - A estrénua vigília tinha, inexoravelmente, atingido o seu epílogo. O edificio da "República" encontra-se vazio. Escuto um último comentário quando passo no Largo da Misericórdia: "Alguns indivíduos conseguiram fazer o que nem a censura fascista se atreveu: que as portas do jornal mais antifascista de Portugal fossem seladas!".




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Retirado de "O Caso República, documentos, entrevistas e comentários"



O Caso República
1997 - Lisboa, Portugal

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Trabalho realizado por:
Pedro Miguel Guinote
Rui Miguel Faias
Mário Rui Nicolau


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